sexta-feira, 20 de agosto de 2021

 

3. Abertura das aulas no Liceu e Lição de Sapiência em 1934

A sessão de abertura das aulas em nosso principal estabelecimento de ensino, realizada na segunda-feira, constituiu um acontecimento de relevo no nosso meio académico pelo, já pelo brilho de que foi revestido, já pela assistência, que era selecta, já pelos oradores, que se desempenharam cabalmente e seriamente da sua missão.

Acorreram à sessão, além de todo o proficiente corpo docente do Liceu, os directores da Associação dos Antigos Alunos, fundada pelo actual Reitor, Sr. Dr. Paulo de Cantos, numerosos alunos, muitos encarregados de educação e algumas pessoas gradas da nossa terra.
O salão onde se efectuou a festa foi uma das salas de aula, porque o edifício, impróprio para o ensino e mal localizado, não tem salão próprio para festas, como seria para desejar e como exige a decência e a pedagogia. Por não haver salão, a Reitoria não fez convites nem sequer às autoridades, não envolvendo essa atitude desprimor para ninguém. Apesar disso, a sala estava completamente repleta com os alunos, professores, directores dos colégios locais, etc.



Em 1934, o Liceu funcionava ainda na Fábrica do Gás.


O discurso do Dr. Paulo de Cantos

Levanta-se então, entre as vibrantes salvas de palmas da assistência, o Sr. Dr. Paulo de Cantos, professor distinto e ilustre Reitor do Liceu, que proferiu o seguinte breve mas conceituoso discurso.
Ex.mo Sr. Presidente da Associação dos Antigos Alunos,
Ex.mos Srs. Directores dos Colégios,
Srs. Encarregados de Educação,
Caros Colegas,
Meus amigos:

Tudo, neste mundo, tem começo, meio e fim!
Vamos hoje dar início a um novo lectivo. Boa hora seja esta, a du­ma cerimónia singela que ambicionamos se constitua penhor da mais franca e afectuosa familiaridade.
As primeiras palavras que pronuncio são de saudação. Nelas me acompanham todos os prestigiosos e dedicados professores deste estabelecimento de cultura e ensino.
Sede bem-vindos a esta nossa casa! - a fórmula mais paternal e tão espontânea como esse castiço ou po­veiríssimo “Ala arriba!” - expressão terna de companheiros mais velhos aos mais novatos.
Entre nós, outros membros desta família liceal podem gritar: ala, ala, arriba! São os alunos veteranos a “os passaritos”, que chegam agora da escola primária, ávidos de mais luz espiritual e cheios de alegria alvoraçada.
Ora a regra de conduta destes, ou seu lema, à semelhança de outro bem impressivo, pode ser por exem­plo:
O "Pardalito”, o “Terrote”, não se escuta a si próprio. O “Terrote” escuta os velhos pardais.
Que meditem então nuns conse­lhos de amigo, que coordenámos e vão ser ditados pelos “pardalões” da gaiola aberta e dourada que é a vossa Associação Escolar, solidária das solidárias de cada turma e classe, grémio esperançoso e alegre que tem procurado cumprir e servir com devoção, sem prejuízo de obrigação, é claro.
Escutem, pois.
Neste momento, a um sinal do ilustre Reitor, um “pardalão”, o aluno Orlando Lima, lê:
“1.º - Atenderemos sempre às advertências dos nossos superiores, bem como às suas indicações transmitidas pelo pessoal menor”.
E o Sr. Dr. Paulo de Cantos, prosseguindo, comentou:
É o princípio da ordem ou da autoridade e equilíbrio, que é preciso venerar e fazer venerar. Haja alguém que nos governe! - suplica  a cada passo, na bonança como na tempestade, toda e qualquer tripulação dum barco, por mais pequeno que ele seja, senão … triste vida a do marujo.
Outro “pardalão”, o aluno Miguel Montenegro, lança a nova regra de conduta:
“2.º - Dentro do liceu, que é a «alma-mater» de todos nós, proce­deremos como em casa de nossas famílias, procurando, com maior asseio e bom senso, aproveitar os 86.400 segundos de cada dia”.
E o orador acrescenta:

É um enunciado do princípio do método. Determina o máximo e melhor rendimento das energias úteis de cada um.

Mais um “pardalão”, o aluno Martins da Costa, dita o último lema:

“3.º - Fora do Liceu não esqueceremos o respeito que devemos aos nossos educadores e a nós mesmos. Eles representam e continuam os nossos pais. Queremos imitá-los no seu labor e na sua conduta moral e cívica”.
E o Sr. Dr. Paulo de Cantos continua:
É finalmente o princípio do brio. Confere a responsabilidade elegante dos próprios actos.
Em verdade vos digo que acções grosseiras ou mesmo simples palavras grosseiras são indignas da posição a que aspirais na sociedade.

Briosa - a Briosa - tem sido por vezes chamada a classe académica, a que todos temos a honra de pertencer, ou de ter pertencido já, em tempos idos que a saudade relembra sempre comovidamente.
Fica então proposta uma divisa para os primeiranistas e porventura estabelecidos os axiomas da ordem geral, base do método, que é ordem na inteligência, e do brio, que de certo modo é método íntegro, filho da consciência responsável e do sentimento.
Posto isto vai dar-nos o prazer intelectual de proferir este ano a costu­mada Oratio Sapientiae o Ex.mo Sr. Dr. Abílio de Carvalho. Foi há pouco in­vestido no espinhoso cargo de nosso médico escolar, após um concurso público brilhante em que tanto se dignificou, dignificando também o próprio Liceu, pois já vinha desempenhado há anos estas funções a título provisório e muito generosamente, visto que até hoje, nunca recebeu remuneração alguma.
Tem a palavra o Sr. Dr. Abílio Garcia de Carvalho (1).

Coroou as últimas palavras do Sr. Dr. Paulo de Cantos uma estrepitosa e frenética ovação, que, ao esmorecer, recobrou intensidade para aclamar o Sr. Dr. Abílio de Carvalho, que se le­vantara a fim de pronunciar a sua Oratio Sapientiae.

O Discurso do Dr. Abílio de Carvalho

A Oratio Sapientiae, do Dr. Abílio de Carvalho, é uma autêntica lição de Sapiência, um verdadeiro discurso de sabedoria, feito com ponderação, critério e elevação. São multíplices os seus ensinamentos de ordem intelectual e moral. Nesta época de baixo e vil materialismo, em que o homem parece esquecer e menosprezar os princípios eternos sua natureza, da sua vida e do fim para que foi criado, é dever indeclinável proclamar esses princípios eter­nos, essas verdades imutáveis que re­gem os orbes, as sociedades e os indivíduos - por mais que se pretenda o contrário - e a que todo o ente racional tem de obedecer, ainda que apa­rentemente contra eles se insurja.
O Sr. Dr. Abílio de Carvalho não se prendeu a preconceitos erróneos, não olhou a respeitos humanos, não tergiversou entre a verdadeira ciência e a pseudo-ciência, a falsa ciên­cia, entre a verdade sem véu e essas verdades que por aí correm, obnubiladas por muitas mentiras, condimen­tadas com princípios de falsa e perni­ciosa moral.
Initium sapientiae timor Domini o princípio, a base, o sustentáculo de toda a ciência é o temor do Senhor, o temor de Deus - e o Sr. Dr. Abílio de Carvalho não titubeou em procla­mar, no grémio selecto do Liceu -, onde a par de mentalidades já forma­das, já em plena laboração, se encon­tram outras em preparação e que é preciso orientar, corrigindo-lhes todas as propensões para o erro, para o vício e para o mal – não titubeou em proclamar o caminho da verdade, do bem e do belo.
Nós queremos arquivar em nossas colunas a Oratio Sapientiae do Sr. Dr. Abílio de Carvalho, que foi acla­mada pela assistência, que gostou das afirmações categóricas e inelutáveis dessas verdades e desses princípios indestrutíveis que informam e alentam e enobrecem os indivíduos, as socie­dades, as nações e a humanidade.

Segue-se, pois, o discurso do Sr. Dr. Abílio de Carvalho.

Seja-me lícito, antes de entrar no assunto da palestra despretensiosa que inicio, e que, por uma singular distinção que muito me honra, me vi forçado a fazer na abertura do ano es­colar, saudar, com grata admiração e apreço, o ilustre Reitor deste liceu, porque S. Ex.cia, com superior critério e inteligente ponderação em todos os seus actos, tem sabido impor o seu espírito à estima e amizade de todos, quer professores quer alunos, pela de­licadeza, pelo trato distinto, e pela justiça firme e criteriosa, que sabe distribuir igualmente aos tripulantes desta nau, para que ela singre em mar calmo e bonançoso, tendo o cuidado constante de afastar escolhos e evi­tar tempestades. Para S. Ex.cia as mi­nhas homenagens.


Dr. Abílio Garcia de Carvalho

Aos ilustres professores, entre os quais conto dedicados amigos, uns companheiros da juventude nos ban­cos das escolas, outros a quem tive a felicidade de encontrar e conhecer no caminho da vida, a todos, em suma, apresento os meus cumprimentos nes­te momento em que assumo colabora­ção efectiva dentro deste liceu, afirmando-lhes a certeza da camarada­gem leal, franca e amiga, de quem como eu foi incumbido de alta missão neste estabelecimento de ensino; missão que é, simultaneamente, a de ve­lar pela cultura física dos alunos e a, mais ainda, de velar pela sua formação moral, porque ambas contribuem directamente, e de forma manifesta, para o seu desenvolvimento intelectual.
Árdua a missão? Bem sei que o é. Mas nem por isso os meus ombros se sentem fraquejar com as responsa­bilidades que assumi; é que a inteligência segreda-me que, por maior e mais longa que seja a distância per­corrida pelo caminheiro da vida, por maiores e mais fecundos que sejam os ensinamentos que a mesma vida haja proporcionado ao viandante, através de lutas em que o espírito sucumbe tantas vezes para outras tantas re­viver, em que os momentos de glória são falazes como as rosas de Malher­be, e só são de ter em conta quando elevem a alma em pureza e perfei­ção, nem os anos de vida, longos em­bora, nem os ensinamentos filhos de experiência profunda, nem as glórias vivas, são garantia absoluta de que muito mais não haja de aprender ainda o caminheiro, de que muito mais não haja de aperfeiçoar o seu espírito em elevação, a sua alma em pureza, e a sua vida interior em bondade fecunda e actividade benéfica.
E esta certeza, senhores, torna-me convicto de que posso assumir a res­ponsabilidade do meu cargo, porque se venho ensinar aconselhando e ori­entando, tenho como certo também que muito venho aprender; e ela dá­-me a convicção de que um trabalho, operoso embora mas fecundo, pode aqui ser realizado, em benefício desta pequena parcela da juventude portuguesa.
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Meus senhores:
Os factores de ordem moral e aní­mica têm tão capital importância no nosso desenvolvimento integral que eu vou procurar salientar o seu­ valor, antes de indicar os meios in­dispensáveis para uma boa formação moral.
Dizia um pensador ilustre, já fa­lecido, que foi professor venerando e querido do Liceu de Guimarães, o Cónego Júlio de Miranda:
“Se são grandes os que pensam, são enormes os que sentem”; em tão simples frases não poderia ter sido consubstanciado, numa síntese mais perfeita, um mundo de verdades das mais belas e profundas.
É que se o pensador, através das lucubrações constantes do seu espírito, investiga elabora, ordena e reali­za, desvendando as incógnitas do Universo, ao colocar o nosso pensamento na colina ascendente dos co­nhecimentos, donde nos é dado verificar, sem esforço, que as incógnitas vão aumentando em proporção directa com a quantidade de luz que jorre em nosso espírito, tal como o horizonte aumenta na medida em que­ nos elevamos ao subir a encosta, se o pensador, dizia eu, é grande, incontestavelmente grande pelo esforço de investigação, que por vezes se desdobra em realidades maravilhosas, o homem de sentimento é enorme, pela acção actual e imediata, com que a sua alma em laboração constante comunga dos sofrimentos, atenuando­-os, pela quota-parte que neles exige, exaltando as alegrias pela felicidade que nelas encontra, e vivendo assim para o Bem e o Belo numa actividade constante, que eleva aproximando de Deus.
O homem vale pelo que tem den­tro de si para dar, pelo que pode comunicar aos outros homens, ou seja em ciência consciente e esclarecedo­ra, quer seja em vida espiritual tra­duzida em elevação comunicativa, em caridade magnânima, em ardente fé, e em esperança vivida, sentimentos estes dinamizados pelo desejo cristão de amar aos outros como a si mesmo e ao Criador sobre todas as coisas.
E, assim, se foi grande, incontestavelmente grande Pasteur, descobrindo os infinitamente pequenos; se foi grande, incontestavelmente grande Newton, descobrindo as leis da atracção universal; se foi grande, incontestavelmente grande Lavoisier, descobrindo leis da química; se foi gran­de, incontestavelmente grande Ampere, descobrindo segredos da física: se foi grande, incontestavelmente grande Madame Curie, descobrindo o Poló­nio e o Rádio; se foi grande incontestavelmente grande o judeu Einstein, criando a teoria da relatividade: foi enorme o Poverello de Assis, quando beijava com caridade sobre-humana as chagas purulentas de seus irmãos represos; foi enorme S. João de Deus, transportando os feridos e doentes, com carinho inexcedível; foi enorme a rainha Santa Isabel, alimentando os pobrezinhos com o pão que a sua alma de eleita pode transformar em rosas de paz e de confiança; foi enorme S. Francis­co Xavier catequizando e apostolizan­do, ao levar a luz da Fé e a cultura das letras às mais remotas paragens das Índias e do Japão. São enormes os médicos que sacrificam o seu corpo às emanações do rádio, mutilando-o progressivamente em beneficio do seu semelhante.
Em suma, senhores: se o homem vale pelo cabedal de ciência que haja guarida em seu cérebro, também vale incontestavelmente pelas qualidades morais que hajam guarida em sua alma; pois que o homem, se é matéria sujeita às contingências das reacções químicas, é ao mesmo tempo informado por uma alma una e indivisível, substância simples, e corno tal incapaz de desagregação, e a desa­gregação é a morte.
Por outras palavras: ao lado reacções físico-químicas que constantemente se elaboram no nosso orga­nismo, possuímos um princípio de ope­rações materiais, ou melhor dizendo, de operações espirituais manifestado constantemente na noção exacta que temos de ideias abstractas tais como a ideia da Alvura, da Honra, do Dever; e somos capazes de afirmações cons­cientes e certas, mas verdadeiramen­te imateriais, como quando afirmamos que o todo é maior que qualquer das suas partes, que o espaço é infinito; e estas operações e estas concepções, sendo imateriais, só podem ser produzi das por um princípio que neces­sariamente é imaterial também e que é a alma humana.
Eu sou dualista, senhores; e cada, vez, encontro mais absurdo na con­cepção materialista da vida, que des­de o tempo de Demócrito, cinco séculos antes de Cristo, até nossos dias, vai reeditando hipóteses que demons­tram cada vez mais a imobilidade do erro em tal doutrina.
Segundo um grande pensador, a própria concepção monista da maté­ria, a mais engenhosa de todas as teo­rias materialistas, tentando explicar, pelas mesmas leis, os fenómenos físicos e os actos psíquicos, baseada na hipótese atómica, deveria tender a dar à matéria um gérmen de consciência; não foi, porém, possível demonstrar, tal gérmen de consciência na matéria.
E a própria hipótese atómica, jul­gada a pedra angular das ciências fí­sicas e até da fisiologia, desaparece tal como foi concebida, ao verificar-­se que o átomo é um conjunto de aniões e de catiões, unidos por formi­dável energia, em tudo idêntica à energia que mantém entre si todos os cor­pos do nosso sistema solar.
E, por isso, eu sou, dualista; por isso eu creio na existência material do corpo humano, informado por uma alma imortal. E se quereis, alunos, uma definição de alma absolutamente compreensível, eu recorro a Charles Nordman, astrónomo actual do Observatório de Paris, que afirma: “Cada um de nós sabe muito bem o que é a sua alma, ou pelo menos o que deno­mina assim: a minha alma é a minha personalidade consciente, é o que se reconhece como tal”. E é Nordman quem diz ainda: “As ciências físico-químicas, das quais faz parte a biologia, não saberiam neste instante trazer-nos a certeza na questão da imortalidade, pois tudo o que pode fazer a biologia é abordar a questão da alma imortal por ataques de flanco, por inquirições de detalhe, por golpes de sonda necessariamente fragmentários que não visam senão a simples probabilidade”.
E sendo assim, senhores, será a completa a educação do jovem quando de se cuida em especial da sua cultura física e intelectual, relegando para segundo plano a sua formação moral, que é anímica, que é essencial?
Por ventura valerá mais o homem robusto e culto, mas sem carácter e sem sentimentos nobres, que o homem de compleição débil embora, mas com aquela formação moral que lhe dê, em larga escala, os predicados admiráveis de nobreza de carácter, generosidade, coragem e abnegação? Creio firmemente que não; mas também creio que o homem vale tanto mais, quanto mais cure da sua formação moral paralelamente com a cultura intelectual e física.
Demasiado tem sido esquecido este assunto até nossos dias; demasiado se tem procurado criar músculos for­tes, sem uma vontade máscula que os guie, sem formação moral que os oriente.
Deixando, porém, as deficiências do passado, fixemos a nossa inteligência nas responsabilidades da hora presente; e esta hora de inquietação afirma-nos que uma nação vale tanto mais quanto maior for a alma do seu povo, isto é quanto maior for a edu­cação da vontade do indivíduo, a for­mação integral do seu carácter e nobreza das suas aspirações; não há nações grandes, por maior que seja o seu território, mas sim grandes nações, por minúsculo que esse território seja, desde que a alma do povo seja grande
Sopra do oriente uma onda cor­ruptora de desagregação social e de morte: é que nações grandes vivem numa agonia atroz, espezinhando a formação moral do seu povo, que em­brutecem materializando-o num regresso escravizante do paganismo de outrora, através de lutas fratricidas. E essas nações grandes, não são gran­des nações porque a alma do seu po­vo se encontra desfalcada no potencial de energia que eleve e que con­duza à beleza moral e à vida espiri­tual, que a cultura intelectual e física torna mais bela, mais corajosa, mais viva e mais generosa. Em contraposi­ção nações pequenas como Portugal, a Suíça, a Bélgica e a Holanda e tantas outras, são grandes nações pelo exemplo de Fé vivida nos seus destinos, de trabalho operoso e fecundo, de onde a paz é ordem, o progresso é civilização, e a moral a base da sua organização social.
Portugal, de modo particular, caminha para uma nova era de glórias, para uma nova era quinhentista, em que pelo espírito está mostrando no­vos horizontes ao mundo, na revela­ção do potencial da sua energia aní­mica que se abre em realizações ma­ravilhosas e fecundas, dominadas e orientadas pela moral.
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Meus senhores:
Na história da antiguidade clássica vemos sem esforço, no que se refere à Grécia, que a hegemonia helé­nica alternativamente pertenceu a Esparta e a Atenas.
A primeira tinha como preocupação dominante tornar o homem soldado; no dizer de Consiglieri Pedroso, “as leis civis que em harmonia com a divisão das terras se instituíram, diziam respeito sobretudo à educação, proibiam o comércio, as artes e as indústrias e forçavam todos os cida­dãos ao mesmo modo de vida, cujo fim era exclusivamente formar valentes soldados para a república.
Outro tanto se não pode dizer de Atenas; segundo o mesmo autor, “o império Ateniense não se tornou so­mente respeitado pela força, mas principalmente pelo grau de prosperidade material e moral a que Atenas se ele­vou no período áureo do seu florescimento”.
Péricles foi amigo devotado das letras, das ciência e das artes, deu à Grécia um dos momentos mais brilhantes na história geral da civiliza­ção.
E, enquanto Esparta cultivava o homem material para o tornar solda­do, Atenas vivia vida intensa do espí­rito, relegando para segundo plano a cultura física. Se Esparta era brutal, Atenas era descuidada. Ambas labo­raram em erro; e daí o predomínio quer de uma quer de outra. Necessa­riamente que, a par da cultura física, a cultura intelectual e moral são abso­lutamente indispensáveis para a for­mação integral do homem; mas por­que Atenas se aproximou mais deste princípio, vencida embora, deixou ao mundo um momento notável de civili­zação; enquanto Esparta legou à posteridade os horrores da Rocha Tarpeia (não era a Rocha Tarpeia, que ficava em Roma, mas o monte Taigeto).
Da cultura física, todos nós conhe­cemos os efeitos imediatos que por vezes assombram; o jovem enfezado, vivendo sem higiene, sem ar e sem luz, de peito esquelético e cores ma­cilentas, cujos músculos se desenvol­vem atrofiando-se do mesmo modo que todos os órgãos, obtém pela cul­tura física inteligente e voluntaria­mente praticada, cores saudáveis, dando amplidão ao seu peito, e enri­jecendo os músculos, por um harmónico desenvolvimento de todos os órgãos.
Se é evidente o benefício da cultura física, preciso dizer-vos, caros alunos, que tal cultura só é óptima quan­do desenvolve harmonicamente todo o organismo; uns músculos hipertro­fiados em relação aos outros órgãos da economia e que causam a admira­ção dos leigos nestes assuntos são ín­dice certo de má ginástica, com as suas nefastas consequências.
A ginástica necessita ser não só criteriosamente e sabiamente orienta­da, mas sentida e vivida pelo educan­do; é necessário e indispensável que não seja praticá-la automaticamente; a condição primacial consiste em que seja executada por determinação en­dógena, isto é que, após o conheci­mento dos movimentos, o individuo
os deseje praticar com perfeição cres­cente; e neste caso o seu resultado é garantido e seguro.
Do mesmo modo vos quero dizer algumas palavras sobre a cultura in­telectual; antes de tudo aluno pre­cisa ter a consciência da sua cultura; em Portugal, como de resto em todo o mundo, ainda prevalece em muitos estabelecimentos de ensino o estéril verbalismo, o artifício da palavra contra a realidade da ideia.
E, a propósito, reproduzo o que li de “Climent Ferrer”: "Impossível parece que alguns varões de clara in­teligência e bem formado juízo nou­tras matérias, se percam no campo da pedagogia e tergiversem no concito da educação, até ao extremo de não compreenderem que, sendo as pa­lavras a expressão verbal das ideias, nada valem se unicamente saírem dos lábios cerno flatulências em desacordo com as ideais assim como, na oração, não brotando do íntimo da alma, de nada valem os murmúrios da prece”. Assim fala Ferrer.
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Caros alunos:
Se para a ginástica ser proveitosa, é necessário que a vontade impe­re, do mesmo modo de nada vale a cultura a verbal se uma vontade cons­tante não procurar esclarecer o espí­rito da ideia que as palavras representam, para que elas sejam pronuncia­das com consciência.
E supondo-vos rapazes de consciência bem formada e bem orientada, afirmo-vos no entanto que é indispensável cuidardes da cultura da vonta­de que ajudará a consciência a per­sistir nas suas deliberações, contri­buindo enormemente para a vossa educação mora; e esta educação é essencial para vencerdes na vida, para que essa vida se possa tornar e digna de apreço e admiração.
Sem vontade forte, o homem é governado muitas vezes pelos instintos, por impulsões, pela sensibilidade e pela emotividade, como li algures. E o homem só o é verdadeiramente quan­do consegue dominar-se, tornando-se senhor dos seus actos e suas acções.
A vontade forja-se, a vontade adquire-se, a vontade cria-se.
E como? - perguntareis vós; é assunto que desenvolverei noutra pa­lestra educativa. Por agora fixai que a cultura da vontade é essencial para chegardes ao domínio de vós mesmos, primeiro e mais importante passo no caminho da educação moral.
E de novo afirmo que a vossa educação não será completa, será manca, será falha, se não tiverdes a preocu­pação de vos educardes moralmente.
Julgo tê-lo demonstrado no que deixo dito; mas ainda cito mais uma opinião sobre o assunto, a qual está em inteira harmonia com a dos mais sábios pedagogos. Conheceis Marden? Por certo; está na moda lerem-se os seus livros. Pois no livro só sobre “For­mação do Carácter" ele afirma que “há íntimo enlace entre as três ordens de educação física, intelectual e moral; demonstra que não são três educações independentes, que qualquer delas não pode ser eficaz sem as outras duas, que não é possível separá-las, que hão-de estar numa correspondência indissolúvel, porque cada uma delas educa um aspecto ou modalida­de do carácter único do ser humano, e é uma fase da única e indivisível educação integral".
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Meus senhores:
Em breves palavras acabo de expor a V. Ex.cias qual o espírito que me anima nas funções que venho exercer.
Elas são múltiplas, complexas e variadas; e tanto basta, para que V, Ex.cias, senhores professores, depreendam que são preciosas todas as informações que me possam fornecer sobre qualquer anor­malidade quer física, intelectual ou mo­ral que encontrem num aluno. Se o assunto de que trato é em especial de ordem moral, é porque infelizmente é aquele que até hoje os poderes públicos mais têm esquecido e quiçá mais despre­zado.
Contudo o mau estudante pode ser moralmente bom; é necessário investigar da causa ou causas que determinam a sua inferioridade: um defeito físico que distraia a sua atenção? um atraso no desenvolvimento das glândulas de se­creção interna reflectindo-se na economia geral, na memória e na vontade? uma nevrose, causa dos seus movimentos e da sua inquietação? uma epilepsia lar­vada, que lhe diminua a inteligência e o torne turbulento, agressivo ou deso­nesto? um atraso no desenvolvimento intelectual e psíquico, por doença congé­nita ou atavismo patológico?
Só o médico poderá orientar e acon­selhar o que deve fazer-se para atenuar ou corrigir a causa da inferioridade.
Ao interesse de V. Ex.cias pelo inte­gral desenvolvimento de cada um dos alunos que nos são confiados, vem juntar-se o meu interesse numa modalidade por­ventura mais transcendente.
Mas eu venho coadjuvar V. Ex.cias na função nobilíssima que desempenham.
Os conhecimentos do médico, quer sob o ponto de vista psicológico, quer sob o ponto de vista terapêutico, higié­nico e anatómico, marcam-lhe uma posi­ção necessária junto da mocidade escolar para a encaminhar na vida precisamente na idade em que as ilusões mais a per­turbam com miragens não isentas de pe­rigos assustadores, que por igual podem atingir o corpo e a alma.
A medicina é uma arte transcendente e difícil, que exige para ser exercida com êxito, além de ciência, experiência. No caso presente o médico na sua fun­ção psicológica, em face do aluno inte­riorizado por causas de ordem moral, di­ficilmente pode ser substituído com van­tagem por outro professor que o não seja, porque, embora grande a sua cultura, fal­ta-lhe a experiência adquirida quotidianamente na luta constante entre a vida e a morte, numa ginástica psicológica que desenvolve necessariamente o poder de sugestão, o poder das afirmações con­vincentes embora falazes, mas que tendem a um único fim: tranquilizar um espírito atribulado, sossegar uma alma inquieta, servindo-se de todos os meios com a mais recta intenção para obter um bem que se deseja, em benefício de outrem.
E esta ginástica e esta luta, senho­res, criam condições de manifesta vanta­gem para o médico psicólogo que queira associar-se à cultura integral dos alunos nas nossas escolas.
Eu venho coadjuvar V. Ex.cias, dizia há pouco, mas preciso, em contraparti­da, que V. Ex.cias me ajudem nesta tarefa que pode ser atribulada em certos casos, mas que, alfim, nos há-de alegrar pelos frutos colhidos através do dever cumprido.
Observar um aluno estudando-o é fácil; mas observar e estudar centenas de alunos, procurando ser rigoroso nesse estudo e nessa observação, para ao fim de um ano poder preencher as respectivas fichas com consciência, é muito difícil, senão impossível; nos anos seguin­tes, porém, o trabalho será menos árduo, porque a maior parte dos alunos serão os mesmos.
Por agora, devemos preocupar-nos em especial com os alunos em inferioridade sob qualquer dos pontos de vista apontados. Facilmente V. Ex.cias reco­nhecem essa inferioridade porque são juízes forçados do seu aproveitamento e comportamento. Pois bem: indicar-me-ão esses alunos, dando-me os elementos que determinaram a opinião que em seu espírito se formou; e eu procurarei a caus­a ou causas do pouco aproveitamento ou do mau comportamento, tentando atenuá-­las ou corrigi-las dentro do possível
E, assim juntos os esforços, harmonicamente num mesmo desejo e numa mesma aspiração de bem servir e de ser útil, eu estou certo de que muito se pode e há-de fazer em benefício da mocidade escolar, tornando realidade a intenção do 1egislador que tão sabiamente marcou o trabalho a desempenhar pelos médicos escolares, dentro do estabelecimento de ensino.

O Dr. Dr. Abílio de Carvalho, acabado o discurso, foi muito aplaudido pela assistência, recebendo os cumprimentos e felicitações dos senhores Professores e de muitos amigos.
O Sr. Dr. Paulo de Cantos tomou de novo a palavra, proferindo este breve e interessante discurso:

Fala o Sr. Dr. Paulo de Cantos.

Cumpre-nos agradecer penhorados o belo trabalho do Ex.mo Sr. Dr. Abílio Garcia de Carvalho. Faço-o com a mais íntima satisfação e uma grande esperan­ça. Satisfação pela elevação, concisão, clareza, elegância, consciência e alma com que foi concebido, vivido, sentido e apresentado. Esperança pela promessa tácita que ele encerra.
Só se não pode concordar, de forma alguma, com as palavras de deferência que me dirigiu, mercê da sua bondade natural comprovada e da amizade pessoal que o liga a todos nós.
É bem verdade que, durante o período escolar, se passam nos alunos três crises a que é preciso assistir: a crise sentimental, a crise das faculdades intelectivas e a crise profissional (com a escolha da carreira, etc.). Todas elas são derivadas da chamada crise fisiológica, que ninguém pode conhecer melhor do que um clínico. Ajudemos portanto o clí­nico competente e especializado, pois ele vem precisamente para nos ajudar.
Esforçai-vos, também, meus caros alunos, porquanto se visa a vossa vitória final na vida prática, que é a vitória de­finitiva de amor dos vossos pais, e tam­bém a nossa própria vitória.
Entretanto interpretai à vontade a singular historieta de certo aldeão que ti­nha um bom pedaço de terra crua na sua freguesia. Um dia passou por lá um ca­çador da cidade, parou, observou-o disse-­lhe:
- Mas que rica terrinha você aqui tem! Isto naturalmente dá trigo!?
- Não senhor - responde o homem - não dá.
- Admira. Então milho dá, com certeza!
- Engana-se Bossa Senhoria, tam­bém não dá.
- Essa agora tem graça! Mas olhe lá, ó santinho, você já experimentou aqui alguma vez semear?
- Ora, ora, adeus! - retorquiu o patego - Pois semeando é claro que dá…
Ai, já vos rides? Mas agora reparai que assim mesmo são alguns de entre vós. No fim do ano andais tristes como ciprestes e às vezes até choram como videiras, só porque não semeiam a tem­po e horas do seu espírito a alegria do trabalho honesto que tudo vence, a confiança no trabalho altruísta que tudo alcança!
Ah, que se muitos quisessem veriam como dava!…
O bom senso popular afirma que “quem não sabe é como quem não vê”. E quem não vê tropeça e sofre a cada passo. Além disso aos que tal aconteça crescem imenso as orelhas, tornam-se-lhes muito compridas e abanem escandalosamente pela vida fora. Compreen­deis? Se os imitardes, sereis de uma modéstia comprometedora, ficareis condenados a burrinhos por toda a vida.
Crede que a coisa pior que há no mundo é não saber que é preciso saber. Também, ao contrário, a coisa melhor que há no mundo é a satisfação do dever cumprido. Ora ponde aqui os olhos nos nossos laureados do ano findo, nos nossos alunos mais altamente classificados. Vão receber os prémios recebidos pela benemérita Associação dos Antigos Alunos, cujo Vice-Presidente nos dá a honra da sua comparência a esta festa. Para eles pois, os do Quadro de Honra, honras os aplausos.
Quem sabe é quem triunfa!
Possam algum dia porventura aumentar em nome e renome a glória eterna de Portugal ou, mais ainda, contribuir de qualquer forma para o progresso moral, mental e material da rude e mísera Humanidade.
Nesse momento começou a distribui­ção dos prémios pelos alunes que mais se distinguiram no ano lectivo transacto, tendo a assistência aclamado esses alunos cujos nome damos abaixo.
E o Sr. Dr. Paulo de Cantos conclui:

Meus senhores: em nome de S. Ex.cia o Sr. Ministro da Instrução Pública, está iniciado o ano lectivo de 1934-1935 neste Liceu de Eça de Queiroz. Que ele seja um ano verdadeiramente feliz, pro­pício a todos, são os nossos sinceros votos. Meus amigos: tenho dito e muito obrigado.
Uma prolongada salva de palmas re­matou a impressionante e entusiástica festa da abertura das aulas no Liceu, que nos calou bem fundo na alma.

Alunos premiados

5.ª CLASSE
Apolinário José dos Reis Pereira
Juvalino Vieira Lino
Cremilde Celeste de Oliveira

4.ª CLASSE
Acácio Fidalgo de Matos
Mário Fernandes da Ponte
Natalina dos Anjos Ferreira

3.ª CLASSE T. B.
Júlio de Oliveira Pinho
Maria Fern. de Almeida Eça Guimarães

3.ª CLASSE T. A.
Joaquim Azevedo Martins da Costa
Miguel Montenegro de Andrade

2.ª CLASSET. B.
Manuel Ribeiro
Maria Agostinha Pinto Lopes

2.ª CLASSE T. A.
Claudionor dos Santos Sobral
Hermínia Pereira de Bacelar Ferreira
Fernando Manuel de A Eça Guimarães

1.ª CLASSE T. B.
Admário Esmeriz Ferreira
António Augusto Lopes de Pinho

1.ª CLASSE T. A.
Manuel Adriano de Freitas
Sérgio da Gama Simões Dias

Idea Nova, 13/10/1934

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(1) Do Comendador Dr. Abílio Garcia de Carvalho vimos uma vez escrito num jornal que era professor do Liceu, mas foi apenas o seu diligente médico escolar. Presidiu à Câmara da Póvoa e era um bom comunicador. Em 1937, foi fazer duas conferências a Évora, que foram apreciadas assim:

Na primeira conferência, revelou-se S. Ex.cia um fino burilador da frase, espírito de cultura invulgar, dicção impecável, além de, em todo o seu dizer, se traduzir a convicção profunda do que se afirmava em suas palavras quentes e apropriadas.
Esta conferência foi o exórdio, a apresentação necessária do grande trabalho apresentado no dia 1 de Junho, “A Eucaristia e a Medicina”. Desse discurso deve dizer-se o mesmo que das grandes obras musicais: não se podem descrever, é necessário ouvi-las. Com efeito, saber mais profundo, convicção mais íntima, erudição mais vasta exposição mais perfeita e até mais ardente não é fácil encontrar-se em orador que seja ao mesmo tempo médico.
A impressão causada por ambos os trabalhos, mas sobretudo por este último, está bem gravada em quantos tiveram a aventura de ouvir a voz autorizada do Sr. Dr. Abílio Garcia de Carvalho.
A S. Ex.cia, em nome dos católicos de Évora, apresentamos os nossos agradecimentos muito sinceros e fazemos votos para que brevemente volte a esta nobre e culta cidade transtagana mimosear-nos com obras do quilate das duas últimas e comunicar-nos o fogo da sua fé e o seu acendrado amor a Deus e às Igreja.

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